Atendimento acolhedor para que mulheres lésbicas continuem a resistir e existir

Liliane Martins é psicóloga, especialista em Direitos Humanos, conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG XIV Plenário), mestranda em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e representante mulheres lésbicas pela RedeAfro LGBT/MG no Comitê Técnico Integral de Saúde LGBT do Estado de Minas Gerais. Sua caminhada a coloca em uma posição de luta em relação à realidade vivenciada por mulheres lésbicas em Minas Gerais. No Dia da Visibilidade Lésbica ela fala em entrevista ao Conselho Estadual de Saúde (CES-MG) sobre a invisibilidade social das mulheres lésbicas e da imprescindível necessidade de que o Estado as reconheça, produza e promova políticas públicas para essas pessoas.

Em Minas Gerais, Liliane avalia as ações necessárias para garantir a saúde de mulheres lésbicas na Política Estadual de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) e a atuação do Comitê Técnico de Saúde Integral LGBT da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG), que conta com a participação do Controle Social, por meio de representação do CES-MG.

Fale um pouco sobre a relevância do Dia da Visibilidade Lésbica, especialmente no momento em que vivemos. E como as mobilizações que dele resultam podem influenciar o desenrolar das políticas públicas de saúde?

O Dia Nacional da Visibilidade Lésbica é celebrado no 29 de agosto em razão do 1º Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que aconteceu em 1996 e que hoje se chama SENALESBI, em reconhecimento a participação e construção conjunta com as mulheres bissexuais. A data é extremamente importante nesse momento político em que passamos por retrocessos, em uma luta de garantia de direitos, quando não temos mais as conferências municipais, estaduais e nacionais LGBT para construir. É um dia dedicado a discutir políticas públicas de combate à lesbofobia e dar visibilidade às mulheres lésbicas no Brasil. Em função da invisibilidade social das mulheres lésbicas é imprescindível que o Estado nos reconheça para produzir e promover políticas públicas relacionadas a nós. As ações tanto institucionais como as puxadas pelos movimentos sociais são de grande importância para a visibilidade das mulheres lésbicas.  Inclusive a Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) e a Coturno de Vênus estão lançando no dia 29 de agosto deste ano, o primeiro Lesbocenso Nacional, para mapear quem somos, onde estamos e como vivemos para enfim ter dados reais a fim de dialogar com estados e municípios sobre politicas públicas específicas.

Em quais pontos a Política Estadual de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) pode de fato avançar para a construção do cuidado e acolhimento especificamente de mulheres lésbicas no SUS e quais seriam os pontos mais críticos?

A Política Estadual LGBT é um documento construído a muitas mãos, dentre elas as minhas que sou representante das mulheres lésbicas no Comitê Técnico integral de saúde LGBT, desde 2016, pela sociedade civil, representando a Rede Afro LGBT de Minas Gerais, assim como pela companheira lésbica Bella Ramalho que compunha comigo essa representação pelo Conselho Estadual de Saúde. Bom, a Política Estadual LGBT tem como objetivo principal a promoção da saúde da população LGBT do Estado de Minas Gerais. No que tange às mulheres lésbicas discutimos muito sobre o exame papanicolau e o tamanho do espéculo, por exemplo, sendo esse um exame incomodo, e que é preciso levar em consideração o tamanho do espéculo, já que temos o P, o M e o G, é preciso respeitar nossos corpos. Penso que os pontos críticos sejam a implementação de formações a profissionais do SUS, assim como preenchimento do campo orientação sexual no formulário da saúde coletiva nos municípios, pois sabemos que a LGBTfobia é diferente da capital para o interior, então a promoção de formação continuada é muito importante para que as e os profissionais saibam acolher essa população.

Como você avalia a atuação do Comitê Técnico de Saúde Integral LGBT da SES-MG na interlocução com a Secretaria e a disponibilidade de promover avanços neste tema para o estado, especialmente em relação à invisibilidade e desassistências desse público no acesso ao cuidado em saúde? 

O comitê já esteve em momentos melhores, na atual gestão nossas reuniões diminuíram muito devido a vários fatores, se tornando quadrimensais. A mudança de gestão trouxe junto a alteração de representações e cargos, mas o mesmo continua com seu trabalho, tanto que conseguimos com que a Política fosse publicada mesmo quando não temos uma gestão estadual que trabalhe para a construção da Política LGBT.  A Secretária de Estado de Saúde (SES-MG) vem caminhando junto ao comitê, não medindo esforços para manter o mesmo. Já chegamos a fazer no Estado em parceria com a SES-MG e o Comitê quando tínhamos Gisella Lima (mulher trans que trabalha na saúde estadual e que fazia parte do comitê) um seminário sobre a saúde das mulheres LBTs na atividade de um

“Outubro Rosa” na Cidade Administrativa; eventos com Lorena Lemos, mulher lésbica negra, que coordenava o comitê, assim como hoje estamos realizando com Luiza Silveira, mulher bissexual, atual coordenadora do comitê web seminários com as unidades regionais e municípios, pautando os temas da saúde LGBT, aliás, teremos em breve o da Visibilidade Lésbica e, posteriormente o da Visibilidade Bissexual.

Em relação à Saúde, quais são os principais danos emocionais e físicos que acometem as mulheres lésbicas? Quais são as estratégias de enfrentamento?

Penso e trabalho muito com a questão da saúde mental das mulheres lésbicas e, segundo o Relatório do I Seminário Nacional de Saúde LGBT, que ocorreu em 2013, em Brasília, as mulheres lésbicas e bissexuais estão mais propensas que as mulheres heterossexuais a depressão, ao tabagismo, ao uso de álcool e a prática de sexo não seguro e a obesidade (não são todas pessoas obesas que têm algum problema de saúde). É preciso pensar na construção da heteronormatividade como norma e como isso nos atinge desde a infância, quando vamos crescendo e entendendo que não fazemos parte do que é considerado “normal”. Várias violências que sofremos desde muito cedo e que muitas vezes começam dentro da própria família. Então, é necessário pensar em um atendimento acolhedor para que as mulheres lésbicas possam resistir e existir.

Quando à interseccionalidade, como a política vem sendo pensada para, por exemplo, a mulher, lésbica, negra, periférica, sem emprego e de classe socioeconômica mais baixa, que é mais vulnerável à violência, quando comparada à mulher, lésbica, branca, que possui um emprego?

A política foi pensada para todas as mulheres lésbicas do estado de Minas Gerais. Por isso falo muito sobre a importância da formação continuada com as Unidades Básicas de Saúde (UBS), pois elas são as portas de entrada da população ao acesso a saúde. Se temos uma técnica de enfermagem, uma médica, uma enfermeira ou uma agente de saúde que entenda sobre o acolhimento a mulher lésbica dentro da UBS, isso já ajuda muito. São nesses espaços que estão sendo atendidas a maioria das mulheres lésbicas negras e periféricas. É preciso um trabalho de conscientização e formação muito sério na ponta, que é a porta de entrada para a saúde e de onde resultam grandes violências a nós lésbicas quando não tem ninguém da equipe preparada para nos acolher. Deixando nítido que não estamos buscando um atendimento especial, mas sim o que é de direito que é um atendimento humanizado e que segue as diretrizes do SUS que é integral, universal e equânime.

Você poderia falar um pouco sobre preconceito e discriminação? Quais são os principais desafios?

Bom, o preconceito é quando você não sabe do que está falando e julga antes de conhecer, a discriminação não, o sujeito já está elucidado quanto às questões e ainda assim não respeita e não aceita. Então precisamos entender que são coisas diferentes, dentro do trabalho seja ele qual for e em específico aqui falando da saúde não podemos ter nem um, nem outro. Mas com as formações muitas pessoas deixam seus preconceitos, é preciso fazer a diferença em todos os espaços que estivermos. Penso que temos como grande desafio as questões religiosas e o patriarcado, que insistem em colocar as mulheres em lugares subalternos e invisibilizados, como sujeitas que não podem falar por si, que não são donas de seus corpos. É preciso apenas que a pessoa seja humana para trabalhar com pessoas, que se dissipe de preconceitos e discriminações é o mínimo esperado quando o sujeito se dispõe a trabalhar na saúde.

Pensando para além da Saúde, quais seriam os gargalos que necessitam de atenção para a elaboração de ações que ofereçam avanços para garantir o bem-estar social de mulheres lésbicas em Minas e no Brasil.

Primeiramente os gargalos são muitos, pensando que temos 853 municípios em Minas Gerais e que quanto mais para o interior o tema se torna ainda mais difícil. Penso que enquanto movimento social as rodas de conversa e debates promovidos em conjunto com as universidades e pelo CRP/MG tem ajudado bastante, assim como os webs seminários da SES-MG tem chegado a todo o estado na modalidade on-line. Mas ainda falta muito, muito enquanto investimento financeiro na política para que ela se estabeleça e funcione, muito no aspecto da mão de obra humana, não podemos esperar que uma médica se interesse no tema para que a UBS tenha um atendimento que acolha as mulheres lésbicas. Mas sim, que essa política chegue como uma orientação de enfrentamento ao preconceito e à discriminação, entendendo que a saúde deve ser um lugar de acolhimento a todas as mulheres independente de sua orientação sexual. Compreender que amor é amor seja do jeito que for. Pensando para além da saúde acredito que o principal gargalo seja desconstruir esse sistema patriarcal no qual os homens se colocam como centro e veem as mulheres como posse, o que se estende para além das mulheres heterossexuais. Por isso, existe o lesbocídio, ou seja, mulheres que são mortas por homens apenas por amar outras mulheres, crimes de ódio, de preconceito, de discriminação e de poder. Isso sim precisa ter um fim.

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