Especificidades em Saúde da Mulher Bissexual

Falar de especificidades em saúde da mulher bissexual é tão necessário, quanto, aparentemente, incomum. Para algumas pessoas pode parecer estranho se falar em tais especificidades. Uma resposta fácil para quem questione a existência delas, seria dizer que se não tivéssemos especificidades em saúde, o governo de Minas Gerais não teria criado vagas para titulares e suplentes de mulheres e homens bissexuais no Comitê Técnico de Saúde Integral LGBT do estado em 2016. Mas esta resposta é incompleta.

É importante contextualizar que a trajetória do movimento bissexual brasileiro é recente, remonta o começo dos anos 2000, e vem se fortalecendo apartada do movimento que se diz LGBT. Isto tem ocorrido, porque as pessoas bissexuais não sofremos bifobia apenas das pessoas heterossexuais. Lésbicas e gays (LG) também podem ser bifóbicas. E o movimento LG de uma forma geral é bifóbico. Violência que vinda dos “dois” lados (sociedade cis[1]-heterossexual e LG) explica nossos índices de adoecimento mental diferentes. Explica, também, porque muitas e muitos bissexuais saíram do movimento que se intitula LGBT buscando o fortalecimento da luta bissexual em outros espaços, com outras formas de engajamento político. A militância bissexual volta a ser realizada de forma conjunta com o movimento LGBT, efetivamente, com a criação do Coletivo BIL (Coletivo de Mulheres Bissexuais e Lésbicas), em junho de 2013, o primeiro movimento de “lésbicas e mulheres bissexuais” realmente bi inclusivo e preocupado com o protagonismo tanto da pauta bissexual, quanto da pauta lésbica[2].

De lá pra cá, vimos crescer o número de mulheres bissexuais que voltaram a acreditar na possibilidade de uma militância realmente profícua ao lado das lésbicas. Um momento significativo nesta questão foi o 9º SENALESBI (Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais), que aconteceu entre os dias 10 e 12 de junho de 2016 em Teresina/PI. Foi o primeiro com a sigla que marca o coprotagonismo bissexual no seminário que nasceu apenas de lésbicas – SENALE – em 1996, desde o começo foi constituído por lésbicas e mulheres bissexuais, mas apenas na sua 7ª edição passou a visibilizar, oficialmente, as mulheres bissexuais no nome por extenso (Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais)[3], mas manteve a sigla SENALE até sua 8ª edição[4], quando se aprovou a alteração da sigla para SENALESBI, e na 9ª edição, enfim, reparou o apagamento das bissexuais naquele “espaço legítimo e autônomo de planejamento, articulação e deliberação dos Movimentos de Lésbicas e Bissexuais no Brasil” [5]. O que foi um passo importante, pois juntas somos mais fortes.

Mas apesar de a militância conjunta ser importante, nossas necessidades em saúde não são idênticas. Precisamos falar em atenção integral à saúde das mulheres bissexuais. Ao dizer isso, não estamos falando da saúde das lésbicas. Ela nos é muito cara, mas não nos basta.

Como acontece com as lésbicas, o preconceito irá prejudicar o tratamento em saúde da mulher bissexual. O preconceito afeta a relação médica/o – paciente com resultados que impactarão no tratamento buscado. Mas enquanto no atendimento das lésbicas o que as afeta é a lesbofobia, no atendimento das mulheres bissexuais é a bifobia que se expressa. Afinal, como toda a sociedade, profissionais de saúde partem da lógica que todas as pessoas são monossexuais (sentem-se atraídas sexual, afetiva ou romanticamente por apenas um gênero – são lésbicas, gays ou heterossexuais) e estão sujeitas a reproduzirem o monossexismo (estrutura normativa na qual se pressupõe que todas as pessoas são monossexuais, considerando a monossexualidade como natural e padrão; e a bissexualidade como uma identidade inválida, inexistente, ilegítima ou de menor valor que as identidades homossexual – lésbica e gay – e heterossexual).

Relatos de pessoas bissexuais no Brasil corroboram a alegação anterior, e um estudo estadunidense, citado por Daniela Furtado em “Alguns dados sobre saúde mental de bissexuais”, atesta isto fora daqui, no qual psicoterapeutas que foram pesquisados receberam uma descrição de paciente fictício que em algumas fichas estava caracterizada/o como bissexual e em outras não se mencionava sua identidade sexual. Quando a/o paciente era identificada como bissexual, era mais frequentemente diagnosticada com patologias cujos sintomas estão relacionados com os estereótipos negativos, repetidas vezes associados a pessoas bissexuais. Contudo, o mesmo não acontecia quando a pessoa paciente, com sintomas idênticos, não era identificada como bissexual[6].

Esta mesma leitura patologizante da bissexualidade pode ser vista no Brasil expressamente em doutrina de saúde mental[7] e é replicada por parte de psicólogas e psicólogos. Fato que ensejou a roda de conversa “Psicologia e Bissexualidade” realizada pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo em abril de 2016[8], após provocação do coletivo Bi-Sides.

O monossexismo tem direta correlação com o adoecimento mental das meninas e mulheres bissexuais, que possuem indicadores de depressão[9], transtornos alimentares[10] e ideação ao suicídio[11] maior do que o das lésbicas, por exemplo. Indicadores de uso de álcool e tabaco[12] de mulheres bissexuais e lésbicas também são distintos. Vale dizer, novamente, que não somos acolhidas pela sociedade cis-heterossexual e, na maioria das vezes, também não somos apoiadas e/ou reconhecidas pela população que se intitula LGBT.

Também se faz importante ressaltar as especificidades na saúde da mulher cis bissexual no atendimento ginecológico. Quando muitas pedem orientações sobre prevenção, são tratadas como se monossexuais fossem, por falha na escuta médica. Tal situação coloca em risco tanto a saúde da mulher bissexual, quanto de suas/seus parceiras/os. Além disso, muitas/os profissionais não sabem lidar com pacientes que confrontam a lógica monossexista da sociedade na qual vivemos. Tal situação pode ser exemplificada quando, na Oficina de Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais[13], realizada em abril de 2014, em Brasília/DF, uma gestora afirmou saber dar orientações em prevenção para mulheres heterossexuais, bem como para mulheres lésbicas, mas tinha dúvidas sobre como orientar mulheres bissexuais. Tal dúvida inexistiria caso ela considerasse a prática sexual da paciente. Ocorre que muitas/os profissionais têm dificuldade em lidar com alguém que reclama para si uma identidade que socialmente é tida como inexistente, pois, conforme já mencionado, confronta a lógica monossexista. Ainda que a profissional citada tivesse realizado o curso da UNA-SUS sobre a saúde integral LGBT, ela permaneceria despreparada para lidar com a identidade bissexual, pois na linha do tempo apresentada no referido curso não é mencionada a existência de pessoas ou práticas bissexuais, assim nomeadas, bem como no decorrer do curso também não são apontados os efeitos da bifobia na saúde de pessoas bissexuais. Falta formação que contemple nossas especificidades em saúde.

Um outro marcador que distingue a saúde das mulheres bissexuais é o da violência doméstica e familiar[14]. Há muitos relatos de mulheres bissexuais que vivenciaram relacionamentos abusivos com parceiros homens, em razão da sua orientação sexual. Muitos deles consideram a identidade bissexual de suas parceiras como sinônimo de objetificação e hipersexualização. Nos relacionamentos com lésbicas, não raro, a marca do ciúme e controle excessivo, em razão do mesmo mito da promiscuidade e do mito da inexistência da bissexualidade também está presente. Até mesmo práticas que tem a ver com a forma como as mulheres lidam com o próprio corpo, como, por exemplo, uso de anticoncepcionais, podem ser tidos por suas companheiras lésbicas, como “atestado” de que a parceira bissexual será, ou é, infiel em relacionamentos monogâmicos. A pressão para que a parceira bissexual se “assuma” lésbica também não é incomum. A violência nos relacionamentos das mulheres bissexuais, muitas vezes, tem o marcador da bifobia presente, o que a distingue das demais formas de violência doméstica contra a mulher quando a vítima tem outra orientação sexual, e impacta sua saúde de forma distinta também.

Ainda é comum lésbicas afirmarem que bissexuais são vetores de doenças, e que a prática sexual apenas entre mulheres lésbicas seria uma forma de prevenção contra IST[15] (mesmo sem quaisquer tipos de barreira ou prevenção[16]). Circunstância reforçada, inclusive, pela bela publicação de 2013: “Mulheres lésbicas e bissexuais: direitos, saúde e participação social”[17] na qual se lê “Existem mulheres que mantêm relações somente com mulheres, mas devem ficar atentas porque pode ser que suas parceiras tenham relações com mulheres e homens, portanto devem ser orientadas a realizarem o sexo de forma segura.” (página 28). Faz-se importante ressaltar que várias pesquisas em saúde refutam tal afirmação[18].

Determinantes sociais e culturais ainda atravessarão as mulheres bissexuais. De modo que se a mulher bissexual for negra, por exemplo, e a maioria da população brasileira o é[19], logo a maioria das bissexuais brasileiras também o são, a bifobia a afetará de forma distinta da que afeta uma mulher bissexual branca, em razão dos privilégios da branquitude em uma sociedade racista[20].

Estes são alguns exemplos de como algumas situações impactam na nossa saúde de forma específica. Tudo isso, e muito mais, impacta na nossa saúde integral. A atenção à saúde integral da mulher bissexual apenas existirá quando nossas especificidades forem levadas em consideração na elaboração da política e em cada fase de sua implementação e monitoramento.

O primeiro passo é a desconstrução, em cada uma de nós, da lógica monossexista. O segundo é a valorização e legitimação do movimento bissexual. Poderemos caminhar quando esses dois passos forem incorporados na política de saúde.

Fernanda Coelho

Conselheira Estadual de Saúde pelo segmento de usuárias, usuáries e usuários LGBT pelo Coletivo BIL – Coletivo de Mulheres Bissexuais e Lésbicas Transexuais e Cisgêneras de Minas Gerais; 1ª Diretora de Comunicação e Informação em Saúde no SUS da Mesa Diretora do CES-MG

2,301 total views, 2 views today

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Accessibility