No Dia Mundial do Livro conheça a obra “A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil”

O livro apresenta a extensa pesquisa histórica feita por Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, e que revela as “poucas” lições que ficaram da gripe espanhola em algumas capitais do Brasil, dentre elas Belo Horizonte, para o enfrentamento da covid-19

No Dia Mundial do Livro é importante refletir sobre o livro como um suporte de informação e comunicação de massa, parte fundamental na construção e preservação da memória social. Foi pensando nesse aspecto que o Conselho Estadual de Saúde de Minas Gerais (CES-MG) aproveita a data para falar sobre o livro “A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil”, escrito pelas historiadoras Lilia Schwarcz (USP) e Heloisa Starling (UFMG), publicado pela Companhia das Letras.

O título está relacionado ao fato de a doença ter ficado conhecida como “gripe bailarina”, em razão da velocidade de mutações de seu agente causador e da forma rápida e perversa com que “deslizava” para o interior das células do hospedeiro, desfigurando e matando suas vítimas em cerca de três dias.

A obra apresenta um minucioso quadro de aproximações entre as pandemias da gripe espanhola – que se estima ter matado, entre 1918 e 1919, 50 milhões de pessoas no mundo e 300 mil só no Brasil – e da covid-19, que um século depois vem apresentando números também aterradores. É nesse ponto que está a importância da proposta de Lilia e Heloísa, mostrar que, na História, experiências humanas dessa magnitude resultariam em lições portadoras de vantagens no enfrentamento de pandemias, mas não é isso o que vem ocorrendo. Negacionismo, negligência, aprofundamento de desigualdades e tratamentos duvidosos no combate à covid-19, repetem o ciclo gripe espanhola no século passado. E o mais alarmante. Os dois momentos são caracterizados por vitimar, sobretudo, pobres e a população negra.

Seguimos ainda enfrentando, como em 1918, a luta por estatísticas que de fato revelem a extensão da pandemia, os impactos na população e contra remédios ineficazes. Mais uma vez, agora em 2021, o povo está a mercê do vírus, aguardando atitudes de Estado que amenizem uma crise que, além de sua extensão sanitária, vem impactando de forma avassaladora a economia e provocando forte recessão.

A bordo do Demerara

No livro, as autoras revisitam as experiências das capitais que mais contribuíram para a chegada e disseminação da doença no país, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. A gripe espanhola chegou ao Brasil no porto de Recife a bordo do navio Demerara – que ficou conhecido como o navio da morte – vindo da Europa. À época, a gripe foi sendo interiorizada por meio de rios e ferrovias, chegando à Belo Horizonte, em 21 de outubro de 1918. O negacionismo já era observado, de acordo com as historiadoras: “Assim como aconteceu em outros países, foi com estranheza e alguma reserva que os brasileiros acompanharam as notícias do desenvolvimento da gripe espanhola. É certo que, diariamente, e desde o final do mês de junho de 1918, os periódicos nacionais estampavam manchetes a cerca das mortes e das medidas de isolamento adotadas nos Estados Unidos e na Europa. Mas os jornalistas o faziam, a princípio, de maneira fria, como se a distância servisse de impedimento para que a grande influenza aportasse em terras tropicais”. (pág. 51)

O médico Samuel Libânio, diretor de Higiene do estado de Minas Gerais, foi o responsável pelo plano de contingência apresentado a poucos membros da Congregação da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, órgão deliberativo e consultivo máximo da instituição. “A diretoria de Higiene, que custara a entender a gravidade do problema, não daria conta de enfrentar sozinha a epidemia”, conta Schwarcz e Starling. Libânio julgou que a doença tinha baixa letalidade e deixou de agir na convicção de que pouco de concreto poderia ser feito para evitar a propagação da doença. “Não considerou a chance de adotar providências administrativas ou formas de prevenção como o isolamento social”. Assim como o uso de máscara, o isolamento social era indicado para conter a gripe espanhola.

Outro motivo da doença ter sido desprezada neste primeiro momento foi a fé inabalável de que a jovem capital mineira, com 21 anos à época, era uma cidade salubre, construída de acordo com os modernos preceitos de higiene urbana da época, estabelecidos por engenheiros e sanitaristas de competência reconhecida nacionalmente. Além disso, o número reduzido ou inexistente de enfermidades com potencial de epidemia até então registrado, como a difteria, cólera, febre amarela, varíola, reafirmava a ilusão das autoridades e moradoras e moradores das boas condições sanitárias de Belo Horizonte. Aliás, Schwarcz e Starling ressaltam que a população encarava a doença com despreocupação e fanfarronava as notícias vindas do Rio.

Por outro lado, médicos como Antônio Aleixo, especialista em doenças contagiosas, estava assombrado com a irresponsabilidade geral e escreveu duros alertas em jornais. “Também os velhos, as crianças e os miseráveis – por miséria orgânica ou de pecúnia – devem ser postos a coberto da infecção”, advertia. Pouca gente prestou atenção no aviso e a espanhola chegou em Belo Horizonte à surdina. O saneamento, com limites fixados na avenida do Contorno, mostrou as fragilidades da nova capital. Bairros populares e a zona rural, com carência de luz, água, esgoto e calçamento foram mais atingidos, com evidente desigualdade entre o centro e a periferia.

Assim como na pandemia de covid-19, foram abertos hospitais provisórios, além de unidade de isolamento, um desinfectório central para ambulâncias e carroças. As atividades escolares foram interrompidas, bem como rituais religiosos e romarias ao cemitério do Bonfim, pois sabia-se que a espanhola se espalhava pelas pequeninas gotas expelidas ao falar, tossir e espirrar. Outro paralelo com a atualidade e que os comerciantes ficaram furiosos com a ordem das autoridades de fechamento das lojas. A população sofreu com a alta dos preços e a falta de produtos básicos.

Do sal de quinino à cloroquina

Chama a atenção, mais uma vez, o protagonismo do Instituto Butantan, em São Paulo, e Manguinhos, no Rio, na tentativa de realizar estudos sobre a gripe espanhola. A primeira filial do Instituto Manguinhos (hoje Fundação Ezequiel Dias) estava instalada na cidade desde 1907 e seu diretor à época, era Ezequiel Dias. O Instituto também se empenhou nas pesquisas, mas ninguém sabia como produzir um remédio ou vacina para conter a espanhola. Era possível, apenas, aliviar os sintomas, com aspirina para a dor, codeína para a tosse, cafeína como estimulante, oxigênio diante da crise pulmonar.

É possível aproximar ainda mais as pandemias de gripe espanhola e covid-19, com o surgimento dos remédios sem comprovação científica. Um medicamento chamou a atenção: o sal de quinino, uma espécie de cloroquina na época. Existiam outros remédios com promessa de cura da gripe espanhola: oxyform, formagem e tônico antifebril. Apesar de figurarem como salvadores, não se mostraram eficazes. Além disso, teve gente em Belo Horizonte que se preveniu amarrando ao pescoço um saquinho com naftalina e alho.

Em 1918, a população de Belo Horizonte girava em torno de 45 mil habitantes, mas a espanhola derrubou 15 mil pessoas e, de acordo com as autoras, os registros apontam um total de 282 mortos, mas faltam dados de quem faleceu fora dos hospitais, dos óbitos não notificados.

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