Carta aberta ao município de Lagoa Santa sobre o PL 5.139 – concessão de bem imóvel para criação de nova instituição congênere à comunidade terapêutica

Minas Gerais, 26 de abril de 2020

Carta aberta para a comunidade do município de Lagoa Santa, vereadoras e vereadores, gestores públicos e operadores do direito, em relação ao Projeto de Lei 5.139 – referente à concessão de bem imóvel para criação de uma nova instituição congênere à Comunidade Terapêutica

“‘PAI, NÃO PERDOA. Eles sabem o que fazem’. Gleice Barbosa Andrade admite que às vezes falta piedade no pensamento e na reza. Vive inconformada, tentando ajudar o filho a se livrar dos traumas gerados pela violência física e psicológica que ele sofreu em um centro de reabilitação antidrogas. Há quase um ano, Gleice internou Bernardo* na Comunidade Terapêutica Centradeq-Credeq, em Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais, porque estava desesperada, sem saber o que fazer com o filho de 15 anos que se ‘afundava na maconha’. Depois de oito meses pagando R$ 1,8 mil de mensalidade, encontrou o menino muito pior do que quando o entregou ao pastor dono da clínica. Hoje, Bernardo só consegue dormir com remédios e vive constantemente assustado.” Esse é um trecho da reportagem escrita pela jornalista Clarissa Levy, publicado no jornal The Intercept Brasil (mídia reconhecida internacionalmente pela coragem de promover denúncias sérias sobre violação de direitos, em diversos paíse), no dia 31 de maio de 2019.

Nos últimos tempos, muitos têm sido os esforços de desvelamento dessa realidade, de denúncias da população, estudos realizados por meio de pesquisas, inspeções, fiscalizações, apresentação de relatórios e documentos que trazem à tona nacionalmente inúmeras e graves violações de direitos encontradas em comunidades terapêuticas e clínicas de tratamento. Dentre as violações ressaltamos sequestro, sequestro com extorsão, cárcere privado, aprisionamento de adolescentes junto com adultos e idosos, violências (físicas, psicológicas, morais e patrimoniais), medicalização sem prescrição médica, punições e abusos. Infelizmente, em Lagoa Santa não tem sido diferente. Pelo Contrário.

As comunidades terapêuticas e as “clínicas de tratamento pra dependência química” têm se apresentado à sociedade como propostas milagrosas, de atenção às pessoas com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas (ou drogas) aproveitando do desespero e do sofrimento de familiares em busca de soluções imediatas – de cunho higienista e punitivista, nada terapêuticas. Essas instituições são desenvolvidas e disseminadas a partir de iniciativas não governamentais, violando princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), da luta antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica.

Na busca por recursos públicos e privados, o “tratamento” oferecido pelas comunidades terapêuticas e as “clínicas de tratamento pra dependência química” é pautado exclusivamente na internação, na abstinência, no isolamento e na maior parte das vezes na obrigação de professar determinado preceito religioso, submissão a trabalhos forçados em nome da laborterapia, na espera de uma cura que nunca chega.

De outro lado, temos uma rede pública de atenção à Saúde Mental Álcool e outras Drogas que preconiza o cuidado em liberdade, baseado na lógica da redução de danos e da sociabilidade do sujeito em seu território, num modelo substitutivo ao hospitalocêntrico, reconhecendo o sujeito em sua saúde integral. Que tem como premissa os laços afetivos, o apoio à família, o acesso a direitos sociais, inclusão no mercado formal de trabalho, alinhamento com as instituições de ensino, e a busca por uma vida mais digna. Mesmo, diante o descaso dos atuais governos, e o financiamento e investimento inadequado.

Neste contexto é importante, e oportuno lembrarmos alguns fatos acontecidos no município de Lagoa Santa:

1) Em 22 de outubro de 2018, foi realizada uma ação de inspeção na comunidade terapêutica Centro de Tratamento e Dependência Química – CREDEQ/CENTRADEQ, localizada em um terreno de concessão pública municipal, construída com recursos estaduais do Fundo Estadual de Saúde – ou seja com recursos públicos; após recebimento de graves denúncias de violações de direitos humanos. A inspeção foi realizada pela Secretaria Municipal de Saúde de Lagoa Santa e pela Coordenação Estadual de Saúde Mental, álcool e outras drogas de Minas Gerais, com a participação e apoio dos seguintes órgãos: Vigilância Sanitária de Lagoa Santa; Conselho Tutelar de Lagoa Santa; Rede de Saúde Mental de Lagoa Santa; Instituto de Direitos Humanos; Ministério Público Federal; Conselho Regional de Psicologia MG; Conselho Regional de Serviço Social – MG; Fundo Brasil de Direitos Humanos e Coordenação Municipal de Saúde Mental de Belo Horizonte. Durante o processo, a Promotoria de Justiça da Comarca de Lagoa Santa, foi acionada e acompanhou toda ação. Além disso, foi necessário o acionamento da Polícia Militar para registrar boletim de ocorrência sobre os fatos encontrados, inclusive sobre a existência de um quarto de tortura apelidado de “QO” – quarto de observação.

2) Nos últimos anos, inúmeras foram as denúncias de violação de direitos contra a comunidade terapêutica FAZENDA VITÓRIA, também com instalações no município. Foram realizadas inspeções pelo Órgão de Vigilância Sanitária Municipal e Secretaria Municipal de Saúde, além de uma inspeção nacional realizada pelo Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão / Ministério Público Federal; conforme descrito no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas de 2017. Documento este, que descreve relatos de mulheres em situação de privação de liberdade na comunidade terapêutica, sobre sanções recebidas em casos de “mau comportamento”. Como por exemplo, ter de copiar, por inúmeras vezes, determinados salmo da Bíblia, e lavar pratos e panelas durante uma semana como uma das modalidades de punição. Os relatórios produzidos a partir das inspeções denunciam que não eram desenvolvidos projetos terapêuticos singulares, de modo que as aspirações e desejos individuais eram desconsiderados, restando um tratamento pautado, sobretudo, por um viés religioso, pelo castigo, punição, coerção, pela abstinência e pela chamada laborterapia; sem nenhum trabalho de resgate de vínculos familiares e/ou comunitários.

Cientes sobre o projeto de número 5.139 do ano de 2020 que irá para pauta de votação na Câmara Municipal de Lagoa Santa, que possibilita, caso aprovado, a abertura de um instituto congênere à comunidade terapêutica, chamado de “Pro Vida”; e cientes sobre intenção de gestores públicos sobre abertura de uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) pública e gratuita, que viabilize oferta de cuidados residenciais para a população de idosos do município que necessitem de medida de proteção social integral, para garantia de sua dignidade de vida; reafirmamos nosso apoio à política defendida pela Reforma Psiquiátrica, pautada na lógica antimanicomial e na estratégia de redução de danos, ao fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e o protagonismo de usuárias e usuários da saúde mental; defendendo:

– Que os espaços de atenção, cuidado e tratamento ofertados às pessoas com transtorno mental e às pessoas com transtorno decorrente do uso problemático de álcool e outras drogas, sejam 100% públicos e estatais; abertos e de base territorial; respeitando os princípios e diretrizes da política de redução de danos e do Sistema Único de Saúde (SUS);

– A resistência contra todo processo de mercantilização e medicalização da vida, expresso, entre outras pelas propostas de privatização da saúde;

– O enfrentamento do viés proibicionista, higienista, hospitalocêntrico e de encarceramento com relação à população usuária de drogas, com defesa da Política de Redução de Danos e ampliação da rede de saúde mental pública, estatal, substitutiva, em detrimento às internações em hospital psiquiátrico, em comunidades terapêuticas e “clínicas de tratamento”;

– O posicionamento contrário às internações e recolhimentos forçados e a privatização dos recursos destinados ao cuidado em saúde mental via ampliação e manutenção de hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas e “clínicas de tratamento”;

– A defesa intransigente do financiamento e investimento adequado da Política de Saúde Mental Álcool e outras Drogas do Estado de Minas Gerais, e no Município de Lagoa Santa com ampliação e fortalecimento dos serviços da RAPS.

E por fim, defendemos e exigimos a não aprovação do Projeto de Lei de iniciativa do Poder Legislativo, de número 5.139, entendendo que os Vereadores e Vereadoras municipais devem considerar o histórico de violações de direitos promovido pelas entidades citadas acima, que colocam em risco a população mais vulnerável do município e região. Além, de significar um desrespeito aos direitos de usuários e usuárias da saúde mental.

E salientamos, o dever intransferível dos órgãos públicos competentes em manter fiscalização ininterrupta de toda e qualquer comunidade terapêutica, clínica e ou congênere estabelecida no território sanitário de Lagoa Santa. Ressaltando inclusive, a necessidade de implantação de medidas de controle para o enfrentamento da Pandemia de COVID-19, com base no Decreto Nº 113, de 12 de março de 2020, que declara Situação de Emergência em Saúde Pública no Estado em razão do surto de doença respiratória – Coronavírus; com respeito à Nota Técnica 01/2020 – CSIPS/GGTES/DIRE1/ANVISA, que versa sobre orientações para a prevenção e o controle de infecções pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) em instituições de acolhimento.

#Praquenuncaseesqueça.Praquenuncamais aconteça! #Porumasociedadesemmanicômios!

ENTIDADES QUE ASSINAM ESSA NOTA

Fórum Mineiro de Saúde Mental/FMSM

Frente Mineira Drogas e Direitos Humanos/FMDDH

Comissão Estadual de Reforma Psiquiátrica do Conselho Estadual de Saúde de Minas Gerais/CERP-CESMG

Instituto de Direitos Humanos/IDH – Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial/RENILA

Associação de Familiares e Usuários da Saúde Mental do Município de Lagoa Santa/AFUSAM

Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de MG/ASUSSAM

Fórum Mineiro de Defesa do SUS Contra a Privatização da Saúde/ FMDCPS

Conselho Municipal de Saúde de Lagoa Santa/CMS-LS

Conselho Municipal de Saúde De Belo Horizonte/ CMS-BH

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