“DAQUI EU POSSO VOAR”

No Dia Nacional de Visibilidade Trans é essencial abordar experiências exitosas que estão sendo desenvolvidas no Sistema Único de Saúde (SUS), como é o caso do Ambulatório de Saúde Integral de Adolescentes, do Hospital Infantil João Paulo II, da Fhemig

Aos 17 anos, Alice contou para a mãe, Kika*, sobre sua identidade de gênero, uma identidade diferente do sexo biológico que até então prevalecia para as pessoas. “Alice pediu ajuda a uma prima, que também tem uma filha trans e, juntas, me contaram em novembro de 2020. Minha filha chegou até mim com muita coragem. Na hora parecia que uma bigorna tinha caído no meu colo, mas peguei a mão dela e perguntei como poderia ajudar”, relembra Kika. Foi por meio da mesma prima, que Alice chegou, em dezembro, ao Ambulatório de Saúde Integral de Adolescentes, do Hospital Infantil João Paulo II (HIJPII), da Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig).

Considerado uma das experiências exitosas do Sistema Único de Saúde (SUS) em Minas Gerais – a Fhemig também possui um ambulatório trans no Hospital Eduardo de Menezes, em Belo Horizonte, destinado a pessoas adultas, mas que está temporariamente fechado devido à pandemia – o Ambulatório de Saúde Integral de Adolescentes existe há cinco anos e tem pactuação para receber adolescentes com adoecimento crônico, pessoas adolescentes na faixa etária de 10 a 18 anos.

A hebiatra do HIJPII, Tatiane Miranda, explica que “ser transgênero ou cisgênero não deveria marcar desigualdade, mas igualdade se os determinantes sociais não marcassem a exclusão social das pessoas não cisgênero”. Ela conta que, por isso, foi necessário um dia específico – às quartas-feiras – para o atendimento de adolescentes transgêneros, pois “as normativas sociais que levam à exclusão e marginalização contribuem para desfechos desfavoráveis que são específicos para essa população, o que é muito triste”, lamenta. Atualmente, o serviço atende a 36 adolescentes trans.

Para Kika, o ambulatório ajuda pessoas vulneráveis e no entendimento de familiares. Destaca que “o problema não está nas pessoas trans e sim em quem está por perto e para muitas famílias a religião dificulta na aceitação”, enfatiza.   

Acolhimento

O acolhimento foi a primeira sensação de Alice ao chegar ao ambulatório e já no primeiro atendimento foi recebida pelo nome social. “Achei o atendimento do ambulatório incrível e agora sei que tenho um norte e segurança para dar os passos que vêm pela frente. Sei que não estou no escuro mais”. Já Kika disse que ficou apreensiva, mas relaxou em seguida. “Fomos recebidas pelo psiquiatra e pela psicóloga. No dia eu estava muito abalada, mas a Alice ficou felicíssima, porque sentiu que não estava sozinha e percebeu que existem vários profissionais para transitar nesse caminho com ela, pessoas preparadas desde a portaria para recebê-la”, lembra.

A equipe de atendimento e acolhimento é constituída por pediatra de adolescentes (hebiatra), endocrinologista, psiquiatra, psicóloga, enfermeira, fonoaudióloga, assistente social e pedagoga. Tatiane explica que a proposta é ser uma equipe de apoio numa rede ampla e colaborativa de saúde, educação e assistência social para esse público. “A condição de saúde de adolescentes é precária e marcada por violação de direitos que começa desde o não acesso à saúde no seu próprio território”, diz.

Segundo ela, há dificuldade de inserção de adolescentes trans na Unidade Básica de Saúde de referência, seja por dificuldade técnica, seja por preconceito. “A saúde dessa população é marcada pelo adoecimento em saúde mental e pelo diagnóstico de doenças que vêm ao conhecimento por ocasião da chegada ao ambulatório, considerando que o tempo médio do último atendimento eletivo em saúde até o primeiro atendimento no ambulatório é de 6,8 anos, ou seja, a maior proporção (88%) teve acesso ao atendimento eletivo em saúde quando crianças”, informa. Das queixas apresentadas no ambulatório como dificultadores do acesso à saúde está a recusa dos serviços de saúde reconhecer pelo nome social.

Processo de transição

Kika conta que, como mãe, também está em processo de transição junto com Alice, se adaptando a chamá-la pelo nome social, assim como a filha está se preparando para iniciar os estudos em uma nova escola, em 2021. “Quero que prevaleça a saúde mental da Alice, que ela tenha estrutura, autocuidado e amor por ela mesma. Estamos nos preparando para a escola desde novembro, vamos nos aproximar da instituição e converso muito com Alice sobre isso. Quero que ela tenha uma boa educação, um futuro promissor. Vou ficar ao lado dela, até que diga ‘daqui eu posso voar’”, diz a mãe, que pretende fotografar todo o processo de transição.

Para Alice, que acaba de completar 18 anos, o início dessa transição foi a descoberta da identidade. “Agora tenho metas, segurança e a certeza de que eu posso ser a mulher que quero”, comemora.

Política Estadual

Em 14 de agosto de 2020, a aprovação da Política Estadual de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais de Minas Gerais representa uma vitória, mas Tatiane enfatiza que é preciso implementá-la de fato. “Considerando essa política pública, o ambulatório assume papel importante, pois sendo um serviço da rede estadual de saúde, ele passa a compor a rede de atenção à saúde dessa população.

Para além dessa política, o ambulatório constituiu um marco quando pensamos naquela população adolescente, que estava desassistida em suas necessidades de saúde”.


Tatiane ressalta desafios como fortalecer e ampliar a rede de apoio e atendimento aos/às/es adolescentes trans por meio de treinamento das equipes de saúde dos territórios e dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) infantis; articulação com a promotoria para garantia de direitos, trabalho em parceria com representações civis e escolas e com os Conselhos Estadual e Municipais de Saúde. E o mais importante: reconhecer o lugar de voz e a necessidade de escuta desses/dessas adolescentes, pois a história vivida é deles/delas.

Visibilidade Trans

Há 17 anos, em 2004, o Ministério da Saúde lançou uma campanha que buscava ressaltar a importância da diversidade e do respeito às pessoas trans no Brasil. A campanha foi iniciada no dia 29 de janeiro e, desde então, transformou o Dia Nacional de Visibilidade Trans em um marco político, data que simboliza a luta cotidiana de pessoas trans pelo reconhecimento de sua identidade, especialmente as que vivem em situação de vulnerabilidade.

*Para manter a privacidade da entrevistada, o nome foi trocado.


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